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Saúde mental deixa de ser tabu e impulsiona procura por terapia

Pesquisas mostram que jovens lideram o movimento, com forte impacto da pandemia e das redes sociais
(Foto: Klisman Oliveira)

A ideia, ou melhor, o tabu de que procurar terapia é sinal de fraqueza ou “loucura” cada vez fica mais distante da realidade brasileira. As novas gerações compreendem que buscar apoio psicológico é um ato de coragem e autocuidado. Os dados confirmam a mudança de comportamento: até o final de 2022, oito a cada dez brasileiros entre 15 e 29 anos relatavam algum tipo de questão mental. Mais do que números, essa estatística traduz um movimento de transformação cultural que se desenha nos lares, nas escolas e nas redes sociais.

Segundo o Instituto Cactos em parceria com a Atlas Intel, 19% dos entrevistados chegaram a fazer algum atendimento, mas restrito a encontros pontuais. Já entre os que estão em processo, 60% iniciaram a terapia durante a pandemia, segundo o Instituto Nexus. O dado mostra que, em meio a um período de isolamento e incertezas, muitos encontraram na psicoterapia um espaço seguro para elaborar angústias. Esse processo rompeu barreiras históricas e fez com que milhares de famílias passassem a enxergar a terapia como parte da rotina de cuidado.

O alerta é global. A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) aponta que metade de todas as condições de saúde mental começa por volta dos 14 anos, mas a maioria dos casos não recebe tratamento. Ao mesmo tempo, o uso problemático das redes sociais vem sendo associado ao aumento da depressão entre adolescentes. Especialistas observam que a hiperconexão, combinada à pressão por desempenho e padrões estéticos inatingíveis, cria um ambiente fértil para o surgimento de sofrimento psíquico.

No Brasil, apenas 5% da população acessa serviços de psicoterapia, enquanto 16,6% usam medicamentos psicotrópicos de forma contínua. Contudo, a procura por terapia tem crescido. Entre 2014 e 2024, o atendimento a crianças de 10 a 14 anos no SUS aumentou quase 2.500%, e entre jovens de 15 a 19 anos, 1.200%. O salto evidencia um cenário de maior conscientização, mas também de desafios: ainda é preciso ampliar o número de profissionais na rede pública e garantir que o acesso seja universal, e não apenas restrito a quem pode pagar.

— Do ponto de vista sociocultural, observa-se uma maior abertura da sociedade para o debate e a reflexão acerca de temas relativos à saúde mental e emocional, bem como uma redução dos estigmas historicamente associados à busca por suporte psicoterapêutico. Essa sensibilização é impulsionada, sobretudo, pelas redes sociais, frequentadas justamente por adolescentes e jovens adultos, que são hoje o público que mais recorre à psicoterapia — analisa a doutora em Psicologia pela UFRGS, Bruna Wendt.

Para a especialista, esse movimento também reflete tensões mais amplas.

— Desigualdades sociais, aceleração do ritmo de vida e incertezas impostas pela contemporaneidade impactam diretamente na saúde mental. Do ponto de vista individual, cresce o desejo de olhar para as próprias necessidades emocionais, de aprofundar o autoconhecimento e ampliar o repertório para lidar com as dificuldades cotidianas. São fatores que impulsionam cada vez mais jovens a procurar terapia — explica Bruna.

O psicólogo florense Christian Fontana percebe o reflexo no dia a dia do seu consultório no bairro Aparecida.

— A procura tem crescido especialmente entre o fim da adolescência e o início da vida adulta. É uma fase de transição, em que há cobrança acadêmica, pressão social e a necessidade de construir uma nova identidade. Esse conjunto gera angústias e incertezas que, com o apoio terapêutico, se tornam mais compreensíveis e menos sufocantes. Ter esse acompanhamento faz toda a diferença — observa.

“Pressão se manifesta como cobrança interna”

A importância de desenvolver uma consciência maior sobre os próprios pensamentos é destacada pelo psicólogo Christian Fontana.

— Muitas vezes, essa pressão se manifesta em forma de cobrança interna. Se o jovem consegue compreender por que passa tanto tempo nas redes sociais e deixa de realizar outras tarefas, já dá um passo essencial para lidar melhor com seus hábitos. Esse tipo de clareza ajuda nas decisões em momentos desafiadores, que todos nós enfrentamos em algum ponto da vida — acrescenta.

Bruna reforça que a pandemia e o avanço das redes sociais atuaram como gatilhos para revelar sofrimentos.

— Ambos descortinaram e intensificaram demandas mentais que permaneciam encobertas. O papel do psicólogo é, ao mesmo tempo, clínico e preventivo: oferecer escuta segura, promover ações educativas sobre os efeitos da pandemia e do uso excessivo das redes, fortalecer habilidades socioemocionais e redes de apoio social e comunitário. Trata-se de um trabalho complexo, que envolve não apenas saúde, mas também educação — defende a doutora.

Bruna destaca que, apesar da abertura crescente, os sinais de sofrimento psíquico muitas vezes ainda passam despercebidos.

— Embora cada indivíduo seja singular e possa apresentar sintomas distintos, observa-se que as mudanças comportamentais costumam aparecer como os primeiros indícios de sofrimento mental: alterações nos padrões de sono e apetite, oscilações de humor, irritabilidade, choro recorrente, tristeza persistente, isolamento social e perda do interesse por atividades que antes traziam prazer — explica.

A doutora da UFRGS defende a necessidade de ampliar políticas públicas que assegurem o acesso gratuito e de qualidade à psicoterapia, além de campanhas permanentes de desestigmatização. Nesse ponto, especialistas ressaltam que o futuro da saúde mental depende da integração entre família, escola e poder público. É esse tripé que pode construir uma rede de apoio capaz de prevenir quadros mais graves.

— Somente assim será possível transformar a busca por apoio psicológico em um direito de fato acessível, e não apenas em um recurso para poucos — acrescenta a profissional.

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